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Este militante anti-cinzentista adverte que o blogue poderá conter textos ou imagens socialmente chocantes, pelo que a sua execução incomodará algumas mentalidades mais conservadoras ou sensíveis, não pretendendo pactuar com o padronizado, correndo o risco de se tornar de difícil assimilação e aceitação para alguns leitores! Se isso ocorrer, então estará a alcançar os seus objectivos, agitando consciências acomodadas, automatizadas, adormecidas... ou anestesiadas por fórmulas e conceitos preconcebidos. Embora parte dos seus artigos possam "condimenta-se" com alguma "gíria", não confundirá "liberdade com libertinagem de expressão" no principio de que "a nossa liberdade termina onde começa a dos outros".(K.Marx). Apresentará o conteúdo dos seus posts de modo satírico, irónico, sarcástico e por vezes corrosivo, ou profundo e reflexivo, pausadamente, daí o insistente uso de reticências, para que no termo das suas análises, os ciberleitores olhem o mundo de uma maneira um pouco diferente... e tendam a "deixá-lo um bocadinho melhor do que o encontraram" (B.Powell).Na coluna à esquerda, o ciberleitor encontrará uma lista de blogues a consultar, abrangendo distintas correntes político-partidárias ou sociais, o que não significará a conotação ou a "rotulagem" do Cidadão com alguma delas... mas somente o enriquecimento com a sua abertura e análise às diferenciadas ideias e opiniões, porquanto os mesmos abordam temas pertinentes, actuais e válidos para todos nós, dando especial atenção aos "nossos" blogues autóctones. Uma acutilância daqui, uma ironia dali e uma dica do além... Ligue o som e passe por bons e espirituosos momentos...

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O LIVRO



O LIVRO
Num dia destes, o Cidadão deparou-se com um caixote de cartão, alto, em tons azul e branco, de bocarra aberta, que, acompanhado de uns dizeres, convidava os transeuntes a depositarem nele, os seus livros ou manuais escolares, propondo serem ressarcidos até vinte por cento do valor de capa, caso esses livros se encontrassem em bom estado de conservação… o Cidadão parou, e perdeu-se em profundos pensamentos ao tomar consciência de tão vil proposta… porque, para o Cidadão, um livro, por mais amassado, velho e gasto que se encontre, contém pelo menos duas mensagens… a implícita no seu contexto, que poderá ser apresentada em prosa, poesia, ficção, ou de conteúdo técnico ou didáctico… científico, filosófico, teológico, estórico ou histórico, ou um banal manual escolar… e a outra mensagem… aquela da relação entre o livro e o seu detentor… os simples apontamentos durante as aulas, descarregados apressada e desajeitadamente nas suas páginas… a divagação de um esboço fantasioso elaborado durante uma lição mais massuda e desinteressante... uma paixão de adolescência rabiscada no segredo das suas entranhas… em forma de corações acasalados com as iniciais dos apaixonados ou divertidos bonequitos… a intensidade do momento em que se leu uma obra mais profunda e elaborada… conjugada com a situação social do país ou acontecimentos de relevo, emoções… traz a todos nós, memórias… e as memórias são como os filmes…mas revivem-se sem se verem… são flasches do passado… e esses livros… a sua indução! As memórias rebuscadas nas capas desses livros, no interior desses livros, quanto mais rabiscados… ou, por mais antigos ou envelhecidos estejam, mesmo amarelecidos pelo tempo, com as páginas descoladas ou lombadas desfeitas e amassadas… minados pelo caruncho… ou colados pela humidade… são sempre memórias… e as memórias valem milhões… o Cidadão tendo livros desses, de quando em vez olha para eles… um a um… e vive profundamente o seu interior… e sente a sua alma… a sua… e a dos livros… se é que você, ciberleitor já descobriu que os livros também têm vida… e desta forma, o Cidadão sentiu enorme desconforto quando um caixote se cruzou no seu caminho convidando-o a despejar no seu ventre, pedaços do passado… sentiu-se mal… mesmo muito mal… e questionou-se… se ali depositasse os seus livros… Os Cinco, o Astérix, o Tintin, o Luky Luke… as histórias aos quadradinhos… todas as aventuras, todos os sonhos, e todos os outros que o enriqueceram e o acompanham pela sua vida adiante… os manuais escolares que ele carregou na mochila durante anos… e os mais maduros e sérios que ajudaram a formar a sua personalidade… despejaria naquele ediondo caixote azul… parte da sua alma… e histórias da sua vida… seria um traidor de si próprio… e nunca mais se perdoaria a si mesmo… NÃO! Não lhe peçam uma coisa dessas! E o Cidadão entretanto, vai-se recordando… do primeiro livro que leu… tinha seis anos de idade… noutras paragens longínquas… lá nos confins da mamã África… deitado na sua cama… num pequeno quarto…afinou a vista pois à noite, a luz era fraca e difusa… habituou-se a juntar as letras… depois as sílabas… começaram a ter significado… de seguida passou a formar palavras… não podia crer!... as frases!… as frases faziam sentido… as frases tinham significado… e associavam-se às imagens que as acompanhavam… parecia magia! Parecia um sonho… e o Cidadão começou a ler de seguida… tudo direitinho… pensou no significado do que tinha acabado de ler… leu mais um pedacito… voltou a parar!... E um novo mundo se abriu para ele! 
O texto começava assim:
“Era uma vez um lobo.
Como o lobo feroz… Fujam, aí vem o lobo!
Tinha dentes de lobo,
Os olhos a luzir…Como o Lobo feroz.
Mas…
Não fazia mal a uma mosca, coitado!
Com ele os três cabritinhos viveriam em paz.
E era uma vez, também,
Um menino perdido e só no mundo.
Nada metia medo àquele herói de palmo e meio.
Ora, certa manhã,
O lobo e o rapazinho
Encontraram-se á beira de um caminho.”
O Cidadão respirou fundo… de consolo… e veio-lhe um intenso cheiro ao velho papel do livro… ou da tinta das ilustrações… mas neste momento… sim no momento em que escreveu este texto… que o ciberleitor está a ler… veio-lhe novamente esse aroma… intenso… o mesmo aroma dos seis anos… olha para o lado… sente dificuldade em prosseguir com a execução do texto… porque a emoção é forte… tem esse livro à sua esquerda… junto às teclas do computador… e parou por um bocadinho… de escrever… porque a memória é forte… a memória está viva… e recorda-se de quem lhe ofereceu esse livro… foi o padrinho… sim, e o álbum ilustrado intitula-se: “O lobo meu amigo”, texto de Marcelle VÉRITÉ e ilustrações de Philippe SALEMBIER da editora VERBO INFANTIL, edição nº 340.
Foi nesses seis anos que o Cidadão começou por construir ideias…
Agora imaginem, despejar no livrão azul, esta preciosidade… e ficar ali, misturado com tantos outros, no anonimato… aguardando que uma máquina o trucide… e imaginem também, cada livro, cada álbum, uma história… diferente… não só a contida… mas a outra… a vivida!
Afinal, quem terá a coragem de despejar assim, num caixotão… retalhos da sua vida? Só mesmo uma pessoa a quem os livros lhe causaram estorvo e peso dentro da mochila! Só alguém que precisou de uns metros deles para preencher um espaço vazio na estante da sala… dá assim… um ar mais intelectual… Só mesmo gente envolvida num mundo materialista, para quem, um livro não passa de um subproduto da madeira com umas coloridas tisnadelas, distribuídas armoniosamente pelas páginas de todo ele! Só de alguém que, mesmo virtualmente letrado é insensível aos valores humanos…
E sabeis que mais? Há seres humanos tratados como esses livros… servem para embelezar as estantes e preencher os espaços vagos de outros seres humanos… e com o seu uso vão ficando completamente amassados, rabiscados e esfarrapados… e depois das suas lombadas perderem consistência… e das suas páginas se começarem a descolar… depois de se fartarem deles, outros os jogarão fora, fria e impiedosamente…
No caixotão azul!