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Este militante anti-cinzentista adverte que o blogue poderá conter textos ou imagens socialmente chocantes, pelo que a sua execução incomodará algumas mentalidades mais conservadoras ou sensíveis, não pretendendo pactuar com o padronizado, correndo o risco de se tornar de difícil assimilação e aceitação para alguns leitores! Se isso ocorrer, então estará a alcançar os seus objectivos, agitando consciências acomodadas, automatizadas, adormecidas... ou anestesiadas por fórmulas e conceitos preconcebidos. Embora parte dos seus artigos possam "condimenta-se" com alguma "gíria", não confundirá "liberdade com libertinagem de expressão" no principio de que "a nossa liberdade termina onde começa a dos outros".(K.Marx). Apresentará o conteúdo dos seus posts de modo satírico, irónico, sarcástico e por vezes corrosivo, ou profundo e reflexivo, pausadamente, daí o insistente uso de reticências, para que no termo das suas análises, os ciberleitores olhem o mundo de uma maneira um pouco diferente... e tendam a "deixá-lo um bocadinho melhor do que o encontraram" (B.Powell).Na coluna à esquerda, o ciberleitor encontrará uma lista de blogues a consultar, abrangendo distintas correntes político-partidárias ou sociais, o que não significará a conotação ou a "rotulagem" do Cidadão com alguma delas... mas somente o enriquecimento com a sua abertura e análise às diferenciadas ideias e opiniões, porquanto os mesmos abordam temas pertinentes, actuais e válidos para todos nós, dando especial atenção aos "nossos" blogues autóctones. Uma acutilância daqui, uma ironia dali e uma dica do além... Ligue o som e passe por bons e espirituosos momentos...

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

OS BARULHOS DO SILÊNCIO I




OS BARULHOS DO SILÊNCIO I
Primeiro capítulo – O homem de bronze
Eram duas horas da madrugada… vejam lá, em vez de o cidadão estar na caminha, andava a vaguear por Constância… só… porque vale mais só, do que mal acompanhado… o nevoeiro teimava em progredir, desde o rio até às primeiras habitações da vila… a luz amarelada… fraca e difusa dos candeeiros da iluminação pública atravessava com dificuldade a névoa e a folhagem das árvores circundantes… o Cidadão tem por vezes a ideia de caminhar solitariamente, nas profundezas das noites mais sinistras em busca do silêncio… e dos barulhos do silêncio… distante de tudo… distante da poluição sonora que impede o escutar de outros barulhos mais discretos… como os da noite… deslocava-se junto ao rio Zêzere, ouvindo o marulhar das águas á sua direita… que se misturavam com as do Tejo… tracejado pelo pio do mocho, um pouco mais distante… o restolhar da folhagem das árvores, tocada pela brisa fria que de vez em quando se fazia sentir na pele… anunciando o início do Outono… a certa altura percepcionou um murmúrio muito ténue… aparentando uma voz grossa, rouca, mas distante… que parecia aproximar-se com o tocar da brisa… dizia qualquer coisa parecida com isto:
- “a, b, b, a; a, b, b, a; c, d , c; d, c, d”…
E passado um bocado, a uma coisa parecida…
-“a, b, b, a; a, b, b, a; c, d , e; c, d, e”…
O Cidadão parou… pôs o ouvido á banda… hum… parecia vir dali… deu mais umas passadas… e o nevoeiro também… pareceu-lhe avistar um vulto mais adiante… curioso… um indivíduo aparentava estar sentado… o Cidadão aproximou-se, mas com cautela… podia ser uma armadilha… olha é um homem sentado numa espécie de um muro e por detrás… uma lápide enorme com uns dizeres… e um enorme meio arco em betão armado… que o nevoeiro ocultava parcialmente…, novamente… aquele murmúrio gutural…
-“a, b, a, b, a, b, c, c,” …
O ruído vinha do vulto… o Cidadão aproximou-se ainda mais… o homem sentado… tinha uma folha nas mãos… olhos bem vivos… e um cabelo ondulado… seria algum fantasma?! O Cidadão, curioso com o encontro imediato de terceiro grau, debruçou-se sobre aquela figura… e com um ar instrospectivo… dando umas pancaditas com os nós dos dedos no peito do artista, de seguida… na testa… resultando num ruído oco e metálico… Hum…
-”Olha! Deve ser mesmo de bronze… um homem de bronze…”
Murmurou o Cidadão… Entretanto reparou no verdete que se alojava nos vincos e dobras das vestes. Com especial incidência na zona dos sovacos… passou-lhe com o dedo indicador… como que a tentar retirar o verdete… quando, subitamente, do interior da figura se ouviu…
- Oh! Oh! Oh! Hiiiiiii… hiiii…. hiiii… hi! Oh! Oh! Oh!
Caraças!!! C’a ganda susto!!! Atão, o gajo não se estava a rir?? O Cidadão depois de recuperar, foi espreitar por detrás do tipo… mas não… não havia ali mais ninguém… só mesmo cá o Cidadão e o tipo de lata!! Hum… já agora… deixa cá ver…
- Ó rapaz… estás bom… ou quê?
Indagou o Cidadão a experimentar… uma vez que não havia ninguém a observar…
-Estou, mais ou menos… enregela-se aqui sentado e quieto… mas depois um tipo habitua-se…

Poças!!! Outro ganda susto!! Não é que o “latas” tinha respondido mesmo??? O Cidadão pigarreou… não queria mostrar medo… sentou-se com jeito junto ao fulano… quando sentiu o traseiro molhado! Tinha-se esquecido que a humidade do nevoeiro encharcara tudo á sua passagem… e voltou á carga…
-Olha lá… como te chamas?!
-Camões, Luís de Camões…
-Então… e estás aqui há muito tempo?
-Desde que aqui me colocaram…
-Ah! Já sei! És o tal que escreveu um livro… não me lembro agora como se chama…
-Os Lusíadas!
-È isso mesmo, “Os Lusíadas”! Mas tu viveste aqui em Constância… foi?
-Por pouco tempo…
E assim se foi quebrando o gelo entre um Cidadão petrificado e o tipo de bronze!
-Bom vou-me embora que já é tarde e a Companheira deve estar a estranhar a minha ausência… com licença.
-Espera! Não vás! Fica mais um bocadinho… tu só tens uma Companheira, é?! Eu tive muuuiiitas!
-Ah sim?!
-Olha. Sabes uma coisa que te digo? As pessoas passam por mim, olham para mim, tiram fotografias ao pé de mim, filmam-se ao pé de mim mas não me ligam pevide! Tratam-me como um objecto!
-Mas isso não acontece só contigo, Camões! Também acontece com muitas pessoas de carne e osso! Principalmente com as mulheres! Enquanto solteiras, são pessoas bastante consideradas… depois de casarem… é o destino de algumas…, passam a ser objectos… no segredo dos seus lares!
-Ooooh! As mulheres, as mulheres! As mulheres foram a minha perdição!
-Então mas porquê?! Fizeram-te mal? Foi?
-Não, mas para isso tinha que te contar toda a minha vida… porque essas ninfas de perdição foram uma constante da minha vida desgraçada! E não estás com vagar para me ouvir…
-Vá! Vai lá contando… que a noite ainda é uma criança… tu disseste que estiveste aqui pouco tempo… então de onde eras?
-Olha, para começar, nasci em Lisboa… aí pelo ano de 1524 ou 1525…
-Então, não sabes o ano em que nasceste?!
-Pois pois… naqueles tempos não havia bilhetes de identidade…
-Mas os teus pais eram de lá ou foram da província?
-Nem eram de Lisboa nem foram da província… eram de Coimbra… descendentes de famílias fidalgas, o que me foi valendo… e também fazia com que atraísse aqueles amigos de ocasião… mas sabes que fiquei sem o meu Pai, ainda era muito novo? Ele partiu para as Índias á procura de ouro e riquezas e por lá ficou… dizem que morreu em Goa… chamava-se Simão… Simão Vaz de Camões… e depois a minha Mãe voltou a casar-se com outro caramelo… que eu não gramava… no entanto o meu tio, D. Bento de Camões, que gostava de mim, pôs-me a estudar nuns conventos de Dominicanos e Jesuítas… daí, esse meu tio mandou-me para Coimbra, a estudar Artes no Convento de Santa Cruz onde ele era o Boss! Introduziu-me nos meios aristocráticos, com a ideia de eu seguir a linhagem da família, onde estudei literaturas e obras de grandes poetas e filósofos! Aí, às escondidas do meu tio, dava umas fugidas e encontrava-me com umas moças jeitosas. O meu tio topou o esquema e recambiou-me para Lisboa… Mas a revolta e a aventura corriam-me no sangue… e aí, ao frequentar os Paços de Noronha embeicei-me por uma dama da Rainha, D.Catarina de Ataíde… e vê lá, tomei-lhe o gosto e enamorei-me pela irmã de D.João III, Rei de Portugal! Uma ganda bronca!!! Era a Infanta D. Maria, vê lá tu!

"Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente ;
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer..."


-Isso já em Lisboa…
-Pois! Daí em diante, o pessoal colava-se a mim, por causa das minhas relações no seio da nobreza, e era um ver se te avias… noitadas, copos, amigos da vadiagem que provocavam distúrbios na noite Lisboeta, mulherio do pior, bordéis, e o Malcozinhado era o da minha eleição! Sempre a aviar!...
-Então quer dizer que eras um put...
-Eh! Está calado com essas bocas foleiras, pá! Olha que nos podem ouvir! Eu era um mulherengo… isso sim!
-Eras um rabo de saia… um p…
-Queres ver? Queres ver que levas com os “Lusíadas” na carola?!
-Não podes…
-Não posso?! Mas não posso porquê?
-Porque nessa altura ainda não os tinhas escrito!
-Ah! Pois é!
-Mas… continua… vá!
-Ora bem… para aí em 1548, depois de me meter em bastantes rixas e brigas de rua, onde a naifa estava sempre presente…
-Eras um faquir…
-Oh! Pá! Cala-te e deixa-me contar! Tinha os meus 24 anos, quando me recambiaram para a vila de Punhete! Devia ser para acalmar os nervos e a testosterona!!
-E onde era isso!?
-Era aqui! Porra! Também não percebes nada! Dããã!... Aqui sim, é que as ninfas eram formosas!
-O que é isso… das ninfas formosas?
-As gajas eram boas! Boazonas! Podres de boas!!!
-Ah sim mas hoje em dia, continuam a ser bonitas… as raparigas!
-Não, já não é como dantes… estou aqui sentado e bem vejo… passa por aqui com cada comboio!
-Olha que não é bem assim… Camões… as mulheres são sempre lindas… mesmo que não sejam lindas fisicamente, tem a sua beleza interior… e depois… para um sapo, nasce sempre uma sapa… Camões… nunca digas isso de uma mulher! Foi a mais bela obra feita no universo… Camões!
-Sabes que ás vezes também tinha essa noção, quando me apaixonava perdidamente e já não importava a carne, só mesmo o espírito… era assim uma coisa…. Como hei-de dizer… Platónica e entrava em Lirismos!

"Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar,
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada."


-Que lengalenga é essa?
-Lengalenga o caraças! Estes são versos dos meus poemas!!!
-Mas Camões, não me digas que aqui em Constância… tu… também… truca, truca…
-Não gozes… tá! Olha que me passo dos carretos e espeto-te a naifa mesmo aí no pescoço!!
-Não podes…
-Mas não posso porquê? Ãh? Ãh?
-Porque és de bronze…
-Ah! Pois sou… Mas olha, realmente era quase isso… as garotas eram lindas!... Eu ia espreitá-las para ao pé do rio… e vê-las a banharem-se e a lavarem as roupas… naquelas posições… sabes…
-Bom… Adiante! Adiante!
-E era vê-las a banharem-se nas águas do Tejo e do Zêzere… todas despidas…
-Ah! Gandas maluuucas!
-E mais, eu espreitava-as quando iam buscar água às fontes, com as suas bilhas de barro… era vê-las a elevarem as talhas à cabeça… com os seus movimentos sensuais… e depois transportá-las segurando as asas com as mãos… deixando revelar formas inexpugnáveis…
-Hummm… e tu partias-lhes as bilhas todas… estou mesmo a ver!
-Mas não me saem das cabeça… eram uma loucura de mulheres! Até lhes pus um nome lindo… as Tágides! Dediquei-lhes poemas e tudo!

"Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tam suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo."


-Eh! Pá! Fala mais baixo que acordas o pessoal!!!
-Chato, pá! Ès um chato!
-Hoje também há moças assim…
-Há? Só se fôr nas Pomonas! Aí sim… é ver as minhas belasTágides desfilando… e eu aqui... que nem posso fazer nada!!! Um homem não é de ferro! Sabes?
-Mas és de bronze…
-Olha não gozes! Tá? Agora para aqui a zombar com a desgraça dos outros!!!
-Diz-me lá então… quando é isso das Pomonas… para eu poder cá vir espreitar as tuas Tágides?
-È no Dia da Raç… ai, ai, ai, não posso dizer isto que ainda me atiram ali para dentro do rio e afogo-me! Quero dizer… é no Dia de Portugal e das Comunidades, a 10 de Junho… ninguém ouviu eu dizer “Dia da Raça”, pois não?! Senão estou feito e vou parar ao Tarrafal!
-Isso já não existe…
-O quê?
-O Tarrafal!
-Isto está muito mudado!!
-Um bocadinho… E depois? Continua… Que estou a gostar… mas não percebi ainda uma coisa… viveste aqui em Constância…
-Punhete!
-Prontos, aqui em Punhete… mas tinhas que comer… vestir… dormir…. Etc!
-Ah! Pois, eu era um teso, mas um teso de boas famílias… e tinha amigos por aqui, cheios de grana, que me iam sustentando… como eu era brigão, passaram a alcunhar-me do “Trinca Fortes”.
-E tu a fazeres estragos… as miúdas não topavam os teus esquemas? Meu grande maroto!!!
Estragos o caraças!! Também ia escrevendo uns poemas dedicados ás cachopas! E sabes… numa terra de cegos quem tem um olho é rei!...
-E tu tinhas os dois!
-Pois, estás a ver, um tipo brasonado… de boas famílias e com uma ganda lábia… vindo de Lisboa, aqui para a província… elas caíam que nem umas patinhas! O pior era livrar-me dos namorados, dos irmãos e dos cotas delas!
-Estiveste por aqui muito tempo?
-Para aí uns seis meses… mas depois os velhos delas começaram a pedir-me contas…não me largavam a peúga… e tive que me pirar!
-Ah! Estou mesmo a ver… seis meses… coisa e tal… não haviam camisas para te protegeres….
-Não havia camisas para me proteger?! Olha que haviam sim senhor!
-E como eram?
-De latão!!!
-Porra! Olha o meu! E isso funcionava mesmo?
-Se funcionava! Nas rixas com os Mouros infiéis, sempre um gajo se protegia das lanças e das punhaladas dos tipos!
-Não, não são essas das armaduras, as que me refiro… são as outras…
E aqui o Cidadão apontou para o chão.
-Ah! Dessas! Essas eram de tripa!
-De triiipa!!!! Mas tripa de quê?
-Tripa de porco…
-Daquelas de encher chouriços?!
-Sim!
-Ah! Ha! E de encher linguiças!!!
-Essas… usa-las tu!!!
E aqui é que o Cidadão perdeu uma oportunidade de estar calado…
-Eh! Eh! Eh!
-Hum… devem haver por aí muitos descendentes teus…
-Chiiiuu! Não fales alto que nos podem ouvir! Que não lembre, nem ao Diabo!!!
-E a seguir… disseste que te piraste… mas para onde?
-Oh! Pá! Alistei-me na Milícia do Ultramar e no Outono de 1549 zarpei para Ceuta… isso é que era dar porrada naquela mourama! Queríamos expandir a fé Cristã… o mercado e o Império Português… Só que um dia… descuidei-me… e foram-me ao olho!!!
-C’um caraças e isso deve ter doído!!
-Foi o direito… daí em diante comecei a andar de pala, que passou a ser a minha imagem de marca! Vim para Lisboa em 1551, tinha eu… uns vinte e seis anos… entrei em depressão, pessimismos… pus-me a magicar naquelas cenas das Filosofias, existencialismos e coisas assim, o moral e o imoral, e entrei novamente em Lirismos…

"(...) Que castigo tamanho e que justiça.
(...)Que mortes que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimenta."


-Xiiiu! Fala mais baixo, já disse! Já viste as horas que são? Há gente a dormir!!!
-E as gajas gozavam comigo… desprezavam-me… vê lá tu que uma até me chamou “cara sem olhos…” mas também lhe respondi assim:

“Sem olhos vi o mal claro
Que dos olhos se seguiu:
Pois cara sem olhos viu
Olhos que lhe custam caro.
De olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejam;
Vendo-nos, olhos sobejam,
Não vos vendo, olhos não são.”


-Entretanto as pessoas iam mudando de ideias e de opinião… consoante os interesses individuais… as conveniências e as necessidades… era a cobiça e a hipocrisia que imperavam…

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o Ser, muda-se a confiança;
Todo mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades."


-Vamos, baixiiinho… Então… e depois?
-Meti-me outra vez na night, na borga, na boémia… e os amigos de ocasião colavam-se a mim! Neste ambiente também arranjei amigos leais, daqueles a sério, que estavam presentes nos momentos bons e nos maus momentos, que discutiam comigo quando era preciso, ou seja, amigos sinceros… até que em 1552, vagueava eu pela noite no largo do Rossio de Lisboa e dou de caras com dois mascarados a esgrimirem com um tipo, cavaleiro Real, de nome Gaspar Borges! O gajo se lutava bem! Era um osso duro de roer! Depois reparei que os mascarados eram meus amigos e estavam á rasca com a destreza do tipo, entrei na rixa em socorro deles! O que fui arranjar! Enfiei uma naifada no cachaço do Borges e aquilo é que jorrava sangue por tudo quanto era sítio! O gajo esteve vai-não-vai para bater a bota! Olha… fui de cana! E estive assim durante um ano a ver o céu aos quadradinhos! A minha mãe, tanto chateou os ministros do Reino e o próprio Borges, para me perdoarem que um dia lá se resolveram a libertar-me… graças, também ao Borges se safar de morte certa! Com um senão: Quatro mil réis de multa, e marchar para a Índia e durante os próximos três anos participar como soldado nas missões das milícias do Oriente!
-Olha lá. Escreve-se “Camões” ou “Camães”?
-“Camões”… porquê? Tu às vezes fazes umas perguntas esquisitas!!
-Nada… não é por nada… era uma dúvida que cá tinha…
Trrim…. tim… tim… trrim… tim… tim… trrim… tim… ti..
-O que é isso?
-È o meu telemóvel!! Tou? Ah! És tu, Companheira… não, não, está tudo bem!... Sim, bem sabes que não… pois… que horas são? Três horas… se vou para casa? Vou pois… onde é que estou? Estou com o Camões! Vou gozar com outra? Não! A sério, estou aqui em Constância… a conversar com o Camões… Quem é esse Camões? A estátua!... Vou bugiar?!... Olha querida… a sério!... Não estou nada numa discoteca… nem numa casa de meninas… é mesmo o Camões… caraças! Vou chatear o Camões? Não, querida… Não bebi nada!! Chata, pá! O quê? A gata Cristie já pariu? São seis? Ganda ninhada!!! Ando na vadiagem?! Sabes bem que não! Já aí vou ter, querida! Até já!
-Então?!
-Oh, Camões, tenho que me ir embora!
-Já?!!!
-Sim… a minha Companheira está fula! Ainda não apareci em casa, a uma hora destas!!!
-Não vás! Fica mais um pouco…
-Não pode ser! Já é tarde! Mas eu volto… Prometo!
-Olha, eu fico aqui sozinho, no meio deste nevoeiro, e cheio de frio… enregela-se aqui! Volta, por favor… não te esqueças de mim… já há muito que não conversava assim com alguém!...
-Adeus Camões… dá aí um aperto de mão!
-Não posso… já te esqueceste que sou de bronze…
-Pois é, Camões… mas olha… volto para a semana… prometo…
-Snif… snif… snif…
-Olha agora! Uma estátua não chora!!!
-Adeus…
-Adeus…
-Tchau!
E assim o Cidadão regressou cabisbaixo, ao seu lar, de rabiosque molhado… e pouca vontade… mas com a promessa de voltar a visitar este grande amigo bronzeado… sim porque o Cidadão gosta de fazer amigos de diferentes ideais, credos ou raças… mesmo que sejam de bronze… ou de granito! E depois… “mexer-lhes nos neurónios”… não se deixando envolver emocionalmente, partindo do princípio que a amizade está acima de tudo!