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Este militante anti-cinzentista adverte que o blogue poderá conter textos ou imagens socialmente chocantes, pelo que a sua execução incomodará algumas mentalidades mais conservadoras ou sensíveis, não pretendendo pactuar com o padronizado, correndo o risco de se tornar de difícil assimilação e aceitação para alguns leitores! Se isso ocorrer, então estará a alcançar os seus objectivos, agitando consciências acomodadas, automatizadas, adormecidas... ou anestesiadas por fórmulas e conceitos preconcebidos. Embora parte dos seus artigos possam "condimenta-se" com alguma "gíria", não confundirá "liberdade com libertinagem de expressão" no principio de que "a nossa liberdade termina onde começa a dos outros".(K.Marx). Apresentará o conteúdo dos seus posts de modo satírico, irónico, sarcástico e por vezes corrosivo, ou profundo e reflexivo, pausadamente, daí o insistente uso de reticências, para que no termo das suas análises, os ciberleitores olhem o mundo de uma maneira um pouco diferente... e tendam a "deixá-lo um bocadinho melhor do que o encontraram" (B.Powell).Na coluna à esquerda, o ciberleitor encontrará uma lista de blogues a consultar, abrangendo distintas correntes político-partidárias ou sociais, o que não significará a conotação ou a "rotulagem" do Cidadão com alguma delas... mas somente o enriquecimento com a sua abertura e análise às diferenciadas ideias e opiniões, porquanto os mesmos abordam temas pertinentes, actuais e válidos para todos nós, dando especial atenção aos "nossos" blogues autóctones. Uma acutilância daqui, uma ironia dali e uma dica do além... Ligue o som e passe por bons e espirituosos momentos...

sábado, 13 de dezembro de 2008

RATA CEGA



RATA CEGA
Aconteceu num verão quente, finais dos anos setenta… cá o Cidadão aproveitava parte das “férias grandes”, no intervalo dos anos lectivos para melhor conhecer o Portugal profundo, calcorreando-o a penantes, utilizando o comboio ou o autocarro afim de se posicionar em regiões específicas… mas não julguem lá os ciberleitores que era só passeio…. Os primeiros quarenta e cinco dias de férias ocupavam-se a sacar uns trocos em trabalhos agrícolas investindo-os posteriormente em tais incursões, só, ou acompanhado com meia dúzia de aventureiros… desta feita, visto o pessoal preferir queimar as peles nas enseadas nacionais permanecendo em ociosos tédios de barriguinha para o ar, o Cidadão resolveu meter calcantes ao caminho e lá foi, de mochila tipo “setenta litros” ás costas, das primeiras estruturadas em alumínio a vaguearem pelo País, chapéu de abas largas, como sempre, cobrindo a cabeça emoldurada com dois palmos de cabelo, barba rala, esquecida há cinco dias, t’shirt negra, calças verde- azeitona com bolso a meio da perna, onde se conservavam pequenas barritas “Castelo” em torrão de caramelo e amendoim … “faplas” de rasto profundo… de meio cano em lona verde… na época, só existiam estas botas adequadas á caminhada, utilizadas pelas forças armadas em missões Africanas… cinturão e cantil igualmente militares adquiridos a preços acessíveis num sucateiro de materiais em segunda, terceira e tantas outras mãos, pois nessa época não existiam empresas para fabricar e vender aventuras por encomenda… faca de mato “Icel” embainhada á cintura, com cabo de marfim e lâmina de uns vinte centímetros, bem equilibrada, afiada e dimensionada, com lombada torneada a serrilha, um “contacto visual” desencorajador para as mentes mais perversas… caminhava nesta triste figura um Cidadão trinta anos mais novo, pelas estradas de alcatrão derretido no seu eixo, ao ser aquecido pelo Sol implacável… no entanto as bermas eram construídas em calçada de granito, brindadas pela sombra de carvalhos e castanheiros que ocultavam um diversificado manancial de vida nas frondosas galhas! Os terrenos do perímetro, escalavam meia encosta, demarcados por tosco rendilhado de muros construídos em seixos empilhados, colhidos no local, revelando o cariz minifundiário da região beirã da Serra da Estrela! Dá a ideia que nestas terras, as pedras nascem do chão! Em certas áreas, planícies verdejantes, revelando terrenos pantanosos destacavam-se da restante paisagem…eram os lameiros… A estrada passou a sinuosa, com algumas descidas e outras tantas subidas, difíceis de vencer a pé… os quilómetros calcorreados penosamente com passadas largas, firmes, rápidas e tecnicamente ritmadas… o Astro Rei descia suavemente no horizonte limitado pela encosta coberta de pinheiros… emanando um intenso e enjoativo odor… a pinho encalorado… mais adiante, num largozito, estava erigida uma capela branca… tão sozinha… com imponente torre sineira… sorrindo ao Cidadão… junto, uns bancos toscos, em granito, convidavam o viajante a repousar… mais ao lado, uma pia, a meia altura, também escavada no granito, abraçava uma singela torneira em cobre… o Cidadão desatarraxou o manípulo… corria água… primeiro quente, depois tépida… e finalmente, gelada! Deveria provir de alguma mina ali por perto… o Cidadão renovou a água do cantil… quando reparou numas fitas em papel crepe, suspensas em forma de coloridas bandeirinhas drapejando ao sabor da brisa do pôr do Sol… hum… havia festa por perto… afastou-se para debaixo da sombra de um castanheiro… arreou a pesada mochila, sentou-se a admirar os ouriços meio escachados, desmascarando umas castanhas apetitosas… sacou do pão, da faca de mato… de um “chouriço espanhol” já incertado… e pensava… onde iria montar a sua tenda canadiana para a pernoita… vislumbrava o espaço á sua volta… hum… talvez ali… por detrás daquele muro, abrigado do vento, o terreno era seco, menos pedregoso… a árvore de copa larga protegeria de eventual gravanejo nocturno… porque na serra, o clima é imprevisível… agora está agradável…mas daqui a meia hora poderá progredir um nevoeiro por detrás das encostas e formar-se uma pequena tempestade, típica dos micro climas… comia tranquilamente, quando lhe pareceu ouvir umas campainhas, um latir longínquo e assobios curtos e sequenciais… um balir… eram ovelhas, concerteza… o chocalhar tornou-se cada vez mais nítido e próximo, subitamente, lá adiante, ao cimo do atalho, surgiu um cãozito pequeno, de pelo curto e acastanhado… estacou, olhou de soslaio para o Cidadão… rosnou baixinho, sorriu com as orelhitas tombadas para trás… rabo esticado na horizontal… mau Maria… mas os cães não sorriem… portanto aquilo seria uma manifestação hostil… o Cidadão inverteu a posição da faca de mato que até então servia para talhar o pão… a lâmina discretamente apontada ao bicho, como quem não quer a coisa… o animal rosnava ameaçador, a saliva escorria-lhe entre os dentes caninos bastante bem estimados… o gajo tinha, com toda a certeza, ido ao dentista fazer um clareamento… as presas impunham respeito… entretanto, da mesma direcção, surgiu uma ovelha, depois outra, ainda outra, balindo, chocalhando… apareceu outro cão… este sim, aparentava-se mais a uma vaca do que a um canídeo… reparando bem na corpulência do animal… um imponente e felpudo Serra da Estrela… grande bicho, sim senhores… a coisa estava a ficar preta… o bicharoco aproximou-se cabisbaixo com aqueles enormes olhos castanho claros… farejando calmamente o Cidadão… talvez devido á sua estatura, não necessitasse de impôr respeito, como o primeiro pingente… farejou o naco de pão com chouriço… hum…e foi aqui que o Cidadão teve uma brilhante ideia! Tirou suavemente, uma rodela de chouriço do interior do pão e, lentamente, sem movimentos bruscos… deitou-a ao animal… que a apanhou no ar! Ora, ora… quebrou-se o gelo! O bicho foi de abanar a cauda, zás, zás, zás, e meter as patorras dianteiras em cima cá do menino que se encontrava sentado, portanto em posição desvantajosa, dando-lhe, precisamente duas valentes lambedelas na cara!
-Xó! Tira daí… seu brutamontes!
O mais pequinês entrou na festa, e quando o Cidadão se deu conta, estava rodeado de um rebanho de ovelhas, um pastor e dois cães chatos como a putassa! O pastor arrastou seu chapéu para trás coçando o prolongamento da testa revelando alguma calvície, se calhar, por já a ter coçado muitas outras vezes num acto reflexivo e segurando o cajado com a mão esquerda, com ar desconfiado, lançou esta demanda:
-O que é que bochemexê anda a faxer por aqui?
-Boas, ando a conhecer o Mundo!
-Atão ixto aqui também é o Mundo?
-Concerteza!
-E cumo veio dar aqui?
Cá o Cidadão teve que contar a história toda, até ali chegar.
-E donde é que bochemexê bem?
Foram explicadas, pacientemente as origens cá do rapaz, tintim por tintim., tendo como ouvinte um pastor de olhar distante e admirado.
-Ou bochemexê é um grande mentiroso, ou pela a xua idade… é xá munto biachado!
-Olhe, é como queira!
Respondeu o Cidadão.
-Sabe… está a fazer-se escuro e preciso montar a minha tenda… será que o posso fazer além, atrás daquele muro?
-Boxê tem uma tenda? Mas não vejo aqui tenda nenhuma!
-Uma tenda é assim uma casinha de pano, daquelas para fazer campismo!
-Ah! Bochemexê quer dixer uma barraica!
-Isso mesmo! Uma barraca de pano!
-Sim, pode ser além! Aquilo é do Tónho Xaquim mas ele num xemporta lá com ixo, não é para ficar munto tempo… pois não?!
- Não, só até amanhã!...Ouça cá… poderia afastar daqui os seus cães, que me comem o chouriço todo?
-Piloto! Carola! Fuitt! Xaiam daí, já! Vai! Vai! Vai! Xóó!
-Então… e você, como se chama?
-Oh! Pááá! Xé do Cabo!
-Como? Ché do quê?
-Xé do Cabo! Carais!
-Ah! Olhe, vou então para ali montar a tenda…
-Então vá lá, queu fico p’ráqui a tomar recado do rebanho…
E assim, cá o Cidadão despachou-se a montar a canadiana “André Jamet” no sitio visionado… enquanto o ia fazendo, reparou que o Senhor Zé do Cabo se pôs a rodopiar com as ovelhas em torno da capela, constantemente e em círculos, com esta á esquerda, assim foi andando, assobiando ás ovelhas que iam formando uma fila indiana, como que mordendo as caudas umas das outras… o pastor continuava, agora já corria, com os ovinos atrás uns dos outros, os cães com o seu latir, acompanham por fora do círculo… subitamente, o homem deixou de se ver, simplesmente se evaporou! Sumiu, desapareceu sem deixar rasto, mas as ovelhas prosseguiram a sua constante e incansável correria, umas atrás das outras, num seguidismo incegueirado! Fantástico! O Cidadão, já com a canadiana meio armada, parou de bater estacas apreciando aquele bonito serviço! Pensou…e assim ficou mergulhado por alguns minutos, chegando á conclusão que nas coisas mais simples da natureza e do povo se colhem grandes lições!
-Atão Xá está?
-Ãh?
Que susto! Não é que o Senhor Zé do Cabo tinha surgido mesmo por detrás do Cidadão?
-Oixa cá… estive a penxar e bochemexê podia ir dormir a minha caxa… pra não ficar praqui ao relento…
-Isso não! Pelo amor de Deus! Eu gosto mesmo de andar assim! Prefiro mesmo dormir aqui!... A sério!
-Untão oucha! Bochemexê bem até minha caxa tomar uma pinguita e comer um caldo berde bem quintinho!
-È longe?
-Num! È aqui perto… não chega a um quarto de légua! È ali na aldeia…
- Pode ser…Como se chama?
-O quê?
-Essa aldeia…
-Bale de Estrela… Bá, bamos lá, ande!
-Ah! Deixe-me acabar aqui este serviço… sacar a lanterna… e do Kispo… pode vir chuva ou frio… o gorro… ouça lá, não se importa que leve aqui a faca de mato. Olhe… ou então… leve-a você…
-Bochemexê é um bocado chismático! Por aqui as pexôas chão de
Cunfianxa… carais!
- Quer dizer… e ninguém me vem mexer aqui no material? …
-Ena! Até têm rexeio dixo, catano! Fique p’raí descanxado!Nunguém le bem mexer nas cousas!
Assim calcorreámos um quilómetro até chegarmos já noite, á aldeia de Vale de Estrela… eu, o pastor, as ovelhas numa algazarra de balidos, os cães saltitantes e felizes, talvez por terem uma nova companhia… assobios, o pastor arredou o portão do curral, misto de palheiro… acendeu um candeeiro a petróleo… erguendo-o pendurou-o numa trave. Do outro lado da rua abriu-se uma porta de casa… dentro desta jorrou forte luz… e uma voz fininha e melodiosa de menina soou na claridade daquelas aduelas… exclamando:
-Pai! Pai! Já chegaste? Hoje vieste mais tarde… o que te acontexeu?
Era uma linda rapariga… cabelos castanho-claros longos e soltos, rosto cheio e rosado, seios desenvoltos sob uma blusa branca, rendilhada, saiote de camponesa, socas protegendo uns lindos pés, aparentando dezasseis anos… ou pouco mais!
- Ó home, pregaste-nos cá um grande xus… mas… quem é eche caí traxes?!
Tinha surgido a Maria do Zé do Cabo, mulher desenxovalhada e com algum buço…
-Oh Maria, olha o que encontrei ali junto á capela! Há caldo para mais um?
-Olá!...
Cumprimentou a rapariga, com olhos cintilantes de azeitona, e ainda mais corada!
-Olá…
-Como te chamas?
Questionou a moçoila, com olhar cabisbaixo e as mãos embaraçadas no fundo das pontas da blusa…
E o Cidadão disse…
-E tu, como te chamas?
Ela respondeu…Entretanto, surgiu dos fundos da casa uma moçoila mais velha, aparentando outra maturidade, vestida de escuro, lenço na cabeça, avental e mãos cobertas de farinha, provavelmente na confecção de gulodices, que o Cidadão veio a degustar… os maravilhosos cuscurões da região, cobertos por um manto de açúcar… e malandreco, ainda pensou…
“-Haverão mais… moçoilas assim bonitas nesta casa? Parece-me bem que não…”
Eram duas belas representantes da arte e da perfeição da natureza… duas Afrodites! O Cidadão abancou… não assentou porque aquilo era um banquito, na região chama-se mocho… bebeu uns copitos de palheto vertido pelo rude pastor, comeu um quentinho e aromático caldo verde recheado de chouriço, pão caseiro… repetiu, contou algumas das suas aventuras… e elas ouviram fascinadas, fizeram dezenas de perguntas…o Cidadão foi respondendo… dando contas do Mundo…cantaram-se umas modinhas populares… o pastor emprestou a sua flauta de cana… o Cidadão arrancou dela músicas dos Andes…”El Condor Pasa”, modinhas de intervenção…”A Gaivota”…”Grândola Vila Morena”… “Abril em Portugal”… “Pedra Filosofal”… e tantas outras melodias aprendidas nos escuteiros… tudo isto, com uma gaita que não era a sua… o tempo escorreu… não havia televisor naquele lar…um lar pobrezinho, espartano mas… hospitaleiro, ternurento, com enorme riqueza de calor humano… comeu coscorões, bebeu uma aguardente de zimbro, seguiu-se um licor de amoras confeccionado pela rapariga mais velha da casa que fez questão em o oferecer… e, ao desafio com a irmã, deitavam uns olhares cúmplices ao Cidadão… que só as conhecera a umas escassas horas… os olhitos cintilantes das irmãs… o sorriso ternurento da Mãe… o voto de confiança do Zé do Cabo, surpreendido de como é que, da sua flauta de cana, saíam melodias assim… o pastor que convidou em boa hora, o Cidadão a cear em sua casa, mal o conhecendo… sentia-se reconhecido… mais uma lição de simplicidade, de vida, de hospitalidade e de dádiva estava ali a ser escrita por todos nós! Fazia-se história… escrevia-se esta história!
-Então, vais axim embora? Observou a mais nova das irmãs.
-Pois, vai sendo meia noite…
-Tem cuidado com os lobos! Avisou apreensivamente, a mais velha.
-Ah, senhor Zé, o meu cinturão!
-Vou buscar… Tome, aqui está!
-Ai, que horror! Um facalhão tão grande! Para que queres isso! Perguntou a rapariga mais velha…
-Olha, por exemplo para cortar o pão, talhar o chouriço…
-E mais, e mais?
-Para me defender das pessoas más…
-E dos lobos?
-Os lobos não nos fazem mal!
-Isso é o que tu julgas!
-Prontos, já chega, que o rapaz querxe ir deitar, não xejam aborrechidas!
Interveio o Pai.
Assim se foi o Cidadão, numa noite estrelada dum Agosto… constatando que o verão nocturno das beiras era diferente de todo o resto… até o céu, de noite, era diferente… noites beirãs… já ouviram falar? Uma estrela cadente cruzou o firmamento…ali mais outra… seria uma mensagem… ou uma despedida… o pio da coruja, fazia-se anunciar… porra… porra… porra…, pensava cá o Cidadão, caminhando sozinho em direcção á capela de Vale de Estrela e á sua tenda… por que raio as amizades haverão que conduzir ao sofrimento? Deitou-se… contou carneirinhos… cansado que estava, passados uns minutos deixou de ver… de ouvir… de sentir…
Um forte chilrear da passarada… que horas seriam? Sete… O Sol aquecia o duplo tecto em algodão azul… cheirava a erva húmida… um restolhar junto á porta da tenda… hum… havia por ali qualquer coisa a mexer… seria pássaro… seria cobra… a faca de mato… o Cidadão abriu o fecho èclair com jeito… devagar… os raios solares disputavam o seu espaço com a neblina, tracejando-a por entre os pinheiros e os castanheiros, em diagonal, criando um efeito digno de postal ilustrado. Que madrugada espectacular acompanhada pela sinfonia da passarada! A vida diurna iniciava-se lá fora… e aquele restolhar… olha… um ratito… pequeno… ou uma ratita, talvez… castanha… escura… fossava a folhagem caída junto da tenda… o Cidadão fez um gesto brusco para a afastar… e ela indiferente… voltou ao mesmo gesto… e ela, nada… continuava entretida com a sua azáfama… que bicho esquisito, este! O cidadão sacou da naifa passando-lhe a lâmina brilhante á frente dos olhitos,,, e ela, nada…estava tudo explicado…
Era uma rata cega!